Mais um para a festa:
Domingo de manhã, saio da tenda, tomo uma banhoca, calço os chinelos cobertos de tinta sob os meus pés cheios de tinta, sabendo que mais tarde teria que ir calçar os ténis, e tenho na mente tomar o pequeno-almoço e pouco mais. Vou ter ao Café d’Amizade mas fui barrado por portas fechadas, ainda não tinham aberto o Espaço Central, dou umas voltas pelo recinto da festa, a vê-la desabrochar à medida que se aproximam as dez horas. Uma volta e mais outra e já o espaço foi aberto e já a cafeteria tava a servir. Um Ice Tea e um croissant simples, foi o meu pedido. Como quando acordo sou pessoa de poucas conversas, não me dei ao trabalho de encontrar mais alguém que tivesse o mesmo desejo que eu para tomar pequeno-almoço, por isso fui sentar-me sozinho. Um dos poucos aspectos positivos de se estar sozinho é que tenta-se puxar todo o mundo para nós, focam-se com mais atenção o que se passa à volta, ouve-se as conversas alheias, opina-se sobre os dados recolhidos pelas acções referidas. E foi isso que aconteceu, ouvi do balcão o seguinte: “O galão era meio morno, sff.”, disse uma voz feminina, e eu pensei – O que é meio morno?
O que é meio morno?
Ora bem, tracemos um segmento de recta. Num dos extremos, está o mais frio que um galão pode estar, no outro o mais quente, sendo que um galão que não está frio nem quente está morno, são as designações comuns em relação à temperatura de um galão. Ou seja, o morno está no meio. O problema é se o morno é o meio entre um negativo e um positivo, então torna-se impossível dividi-lo. Mas isto é apenas se considerar a dimensão da temperatura no que toca às propriedades de um galão. Se eu adicionar mais um eixo, tal como a realidade do galão é multi-dimensional, então ele poderia trespassar o meio do eixo da temperatura e efectivamente ser um galão meio morno.
Porque no fim de contas, o meio é apenas um ponto e tal como o átomo que se considerava indivisível até JJ Thompson ter descoberto o electrão, um meio, um ponto também eventualmente, terá uma fracção menor. Resumindo esta primeira análise, um galão meio morno seria um galão morno com uma outra propriedade relativa a galões extra, assumindo eu pela intenção do pedido, algo fora do normal, quem sabe queria mais açúcar ou que o galão fosse servido com uma palhinha. Isto a mulher não esclareceu, o que deverá ter colocado uma grande pressão sobre o rapaz a fazer o atendimento ao balcão.
No entanto, com o passar do dia, talvez por querer afastar dos meus pensamentos que não iria assistir aos concertos dos Che Sudaka e dos Xutos & Pontapés, apercebi-me de uma falha, não podia ser uma outra propriedade qualquer, como adição de açúcar. Pois no eixo dimensional do açúcar num galão, ou tens açúcar ou não tens açúcar, na adição de açúcar, terás sempre a deslocar-te no eixo de x para maiores quantidades de açúcar. Não tens a intersecção exacta com o morno de forma a dividi-lo em ½ morno. Isto reduz as possibilidades no pedido. Neste ponto, considera-se plausível o pedido ser, de facto, um galão morno com uma palhinha, porque: ou não há palhinha, ou tens uma palhinha, porque não existem meias palhinhas, se cortares uma ao meio, continua a ser uma palhinha, ou tens mais que uma palhinha. E apesar de não ter chegado a uma conclusão exacta, fiquei contente com o resultado que tinha chegado, durante duas semanas.
Mas há uns dias atrás, sim, porque uma questão como desconstruir uma expressão como meio morno é algo para ficar a pensar durante bastante tempo, pelo mesmo prisma, observei o meio morno de outra forma. Até agora, estava a usar um método clássico de análise com classificação qualitativa das dimensões ao bom estilo grego com os seus cinco elementos. Porque, usando, a apreciação científica actual teria que ser quantitativo. Ou seja, os meus eixos não podem ser apenas ser divididos entre frio, quente e morno, mas sim usando uma escala de temperatura, e só após essa escala, poderia qualificar certos intervalos de temperatura como frio, quente ou morno. E usando Celsius, Fahrenheit ou Kelvin, qualquer pessoa intervalaria a condição do galão como morno entre números acima do zero, fora da zona de intercepção com outros eixos, e por isso, divisível nele próprio, podendo excluir a palhinha da equação. Crendo que a mulher partilha de intervalos de temperatura similares aos meus, após uma divisão, ela poderia apenas estar a pedir um galão frio.
Antes da redacção deste texto, pensei que tivesse terminado aqui a minha linha de raciocínio, mas indaguei enquanto o escrevia, se a mulher seguia este modo de pensar quando fez o pedido. Poderá ela ser versada em filosofia grega e de facto apenas se limitou a uma divisão quantitativa? Isso quer dizer que a palhinha volta a estar em cima da mesa? Partindo de uma posição Georgecarliniesca de curiosidade acerca do significado de expressões usadas no quotidiano, tentei descodificar o significado de meio morno de um ponto de vista lógico. Mas reconheço as minhas limitações nesse campo, como podem atestar as minhas notas a Matemática, e gostava de saber se haverá mais interpretações ou aprofundamentos daquelas que tive tanto no plano lógico, como até noutros campos, quem sabe se o pedido não estava cheio de carga psicanalítica, ou derivado da cafetaria se encontrar perto da Bienal, com uma componente intelecto-artística? Porque afinal, o que é um galão meio morno?
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Nem todos os que estão dispostos a lutar pela liberdade, lutam pelo socialismo/ Mas todos os que lutam pelo socialismo, lutam pela liberdade.
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